O mercado global de crédito de carbono gerou US$ 1 bilhão em transações no último ano, de acordo com a consultoria McKinsey. No Brasil, o valor foi de US$ 25 milhões, o que equivale a 17 milhões de toneladas de carbono capturado e convertido em crédito.
Apesar dos números expressivos, o país ainda não possui uma regulamentação para esse tipo de negociação. As transações ocorrem em um mercado voluntário, ou seja, os créditos são auditados por entidades independentes.
Isso resulta em um atraso para o Brasil. Sem um mercado regulado, as empresas não têm metas de redução de emissão de gases de efeito estufa. Com isso, são emitidos créditos abaixo da capacidade nacional, o que gera menos dinheiro e menos responsabilidades na proteção ambiental.
Como funcionam
Um crédito de carbono representa uma tonelada de gás carbônico (CO2) não emitido na atmosfera. Para medir a redução de outros gases de efeito estufa — como metano e óxido nitroso —, é feita uma conversão com base na quantidade que seria equivalente em carbono.
Os créditos são uma espécie de “permissão” para emitir tais gases. O proprietário de um crédito pode emitir uma tonelada de carbono ou concentrações equivalentes de outros gases de efeito estufa. Esse direito de emissão é precificado e comercializado.
Tais certificados são obtidos como “recompensa” por diversas atitudes, especialmente o investimento em empreendimentos que deixem de emitir gases de efeito estufa (por exemplo, a substituição de combustíveis fósseis por energias renováveis) e a implantação de projetos de reflorestamento ou de manutenção da floresta em pé.
O mecanismo de premiação foi criado em 1997 pelo Protocolo de Kyoto, um tratado internacional, assinado por 84 países, para controle da emissão de gases de efeito estufa na atmosfera. Em 2015, o Acordo de Paris estabeleceu metas de redução a serem atingidas pelas nações, que são repassadas às empresas. No último ano, a 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP26) estabeleceu as regras básicas para o mercado global de compensação.
Os países que não conseguem cumprir os objetivos podem comprar créditos das nações que reduziram suas emissões. A mesma lógica se aplica às empresas. Devido ao custo extra da compra, cria-se um incentivo para as companhias reduzirem as emissões ou investirem em projetos que rendam créditos. Em tese, se todos os agentes se adequam à meta, por meio de redução ou compra de créditos, as emissões caem.
Situação atual do país
Dentro das nações, os créditos precisam ser gerados em um processo administrativo (como ocorre com as licenças ambientais). São necessários parâmetros, métricas e metodologias para determinar quantos créditos de carbono determinado projeto pode gerar. Porém, atualmente, não há no Brasil um mercado regulado para isso.
Ou seja, não existe uma lei que apresente exigências e padrões para emissão de gases de efeito estufa e geração de créditos de carbono.
No mercado voluntário, os créditos, para serem certificados, são submetidos à avaliação de auditorias externas independentes. A advogada Thaís Leonel, sócia da área ambiental do escritório SFCB Advogados, explica que não há uma precificação específica e são usados os parâmetros dos mercados internacionais regulados.
Necessidade de regulamentação
Assim, segundo Thaís, regular o mercado significaria “adotar padrões adequados para a nossa realidade” — que não são contemplados pelas regras próprias dos mercados voluntários —, além de estabelecer um órgão central com o poder de emitir os créditos.
Ou seja, se hoje o país precifica os créditos com base em valores gerados de outras fontes, a regulamentação traria parâmetros baseados na cadeia produtiva nacional e no verdadeiro impacto dos projetos — não só para o preço, mas também para o controle das operações.
O advogado e biólogo Ricardo Pedro Guazzelli Rosario, também sócio do SFCB, ressalta que o mercado regulado ainda poderia gerar uma série de empregos relacionados à atividade, em órgãos governamentais, consultorias, escritórios jurídicos etc.
Previsões necessárias
De acordo com Thaís, a regulamentação deveria conter propostas técnicas sobre as metodologias usadas, a forma de precificação e o consequente movimento do mercado, de forma que a lei também encontrasse correspondência no mercado internacional.
Uma norma do tipo, segundo a advogada, deveria dispor sobre controle, obtenção, rastreamento e comprovação da veracidade dos projetos de descarbonização e do cumprimento de metas. Assim, uma entidade predefinida poderia conferir se as empresas de fato reduziram as emissões, quais processos foram utilizados, quantos créditos podem ser gerados, se houve a compra de créditos para compensação etc.
Glaucia Savin, advogada especialista em gestão ambiental, explica que uma lei para regular esse mercado sequer precisaria prever sanções. Afinal, a partir do momento em que o governo estabelece metas, quem não obedecê-las já precisará comprar créditos. “A ideia é que, com a regulamentação, o próprio mercado já estimule um determinado comportamento. É muito mais inteligente do que impor multas”.
Na visão da advogada, uma eventual norma não precisaria ser muito complexa. “O importante é que a lei estabelecesse quais são as metas, para que o Brasil pudesse cumprir seus compromissos globais”.
Para regulamentar o mercado nacional, é preciso ir atrás de mecanismos que já existem. Segundo Rosario, a base são os mercados internacionais. A ideia seria importar regras usadas em outros países para o ordenamento jurídico brasileiro. E Glaucia acrescenta que, para os títulos serem aceitos e comercializados em outros mercados, é necessário “seguir o exemplo de quem já está fazendo”.
Muitas nações delimitam a quantidade de gases de efeito estufa que cada setor econômico e cada companhia pode emitir e estabelecem um teto a partir do qual é necessário comprar créditos de carbono. A tendência é que, quanto mais empresas decidem reduzir suas emissões, o valor do crédito no mercado aumenta. Assim, ter crédito se torna um bom negócio.
Entre os principais países que possuem regulamentações do tipo estão os da Europa, a China, a Nova Zelândia e o Canadá. Há ainda um regulamento no estado norte-americano da Califórnia.
RenovaBio
O Brasil possui atualmente uma iniciativa de mercado de créditos de carbono voltado especificamente ao setor de combustíveis: o RenovaBio. As metas nacionais de emissão são definidas pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) e as empresas podem comprar créditos de descarbonização (CBios), que são comercializados na bolsa de valores.
“É um mercado extremamente regulado, com impacto em toda a cadeia de produção de biocombustíveis, e acaba gerando no mercado financeiro uma conta expressiva”, aponta Thaís.
O RenovaBio é um subsistema desenvolvido para um setor específico, mas uma regulamentação geral poderia estender essa lógica para outros setores, de forma que a experiência do programa servisse como parâmetro.
Porém, segundo Glaucia, seria necessário “trazer tudo para uma mesma plataforma”. Ou seja, criar um único mercado robusto, em vez de diversos mercados e programas específicos para cada setor.
Decreto
No último mês de maio, o governo federal decidiu dar um primeiro passo na regulamentação do mercado de créditos de carbono. O Decreto 11.075/2022 previu diretrizes básicas e definiu nove setores sujeitos às regras, entre eles os de energia elétrica e transporte público — nos quais há maiores emissões de gases de efeito estufa.
Segundo Thaís, o decreto trouxe algumas novidades, conceitos e especificidades e esclareceu o que se pretende fazer no mercado, mas não representou uma regulamentação de fato.
Já para Glaucia, o Brasil começou mal, pois a regulamentação por meio de decreto gera insegurança jurídica. “O decreto é muito frágil para se dar um passo tão sério”, diz ela. Isso porque, futuramente, uma lei pode ser aprovada e dispor de maneira completamente diferente. Além disso, o decreto pode ser revogado a qualquer momento pelo presidente.
O decreto também não estabelece metas para os setores. Em vez disso, prevê que elas sejam discutidas em acordos setoriais, que são geralmente mediados pelo Ministério do Meio Ambiente. Assim, de acordo com Glaucia, cria-se uma permissão para os setores se autorregularem, e a tendência é “nivelar por baixo”.
Ou seja, as empresas podem criar metas pequenas e evitar esforços na redução das emissões. Para que se alcance o efeito desejado, segundo a advogada, seria preciso “acreditar muito que o setor privado resolva ser corajoso e colocar metas ambiciosas”.
Além disso, as metas abertas não incentivam investimentos de longo prazo e podem inibir ações já em andamento.
Glaucia entende que poderiam ocorrer audiências públicas, com a participação dos setores produtivos. “Mas em qualquer país civilizado é o governo que estabelece as metas. Não tem sentido cada um dos setores falar quanto vai emitir”, opina ela.
Outro problema desse modelo é a demora. Os acordos setoriais são um processo longo — pouco mais de um ano para cada setor, de acordo com a advogada. Assim, a discussão e a implementação das metas poderia levar anos.
O decreto estipula o prazo de 180 dias, prorrogável por mais 180, para que os setores apresentem suas propostas de redução de emissões, mas não prevê nenhuma sanção em caso de descumprimento de prazo.
Outro problema: em todo o mundo, os créditos são medidos em carbono equivalente. Porém, o decreto brasileiro instituiu o conceito de crédito de metano, que não é utilizado em nenhum outro local. “Nós inventamos uma moeda nova, que não vai ter referência no resto do mercado”, critica Glaucia. O correto seria gerar uma moeda que pudesse ser trocada em qualquer lugar.
Por fim, a advogada destaca que o decreto também não explica como funcionará o sistema nacional de redução de emissões, qual plataforma será usada e qual a sua segurança.
Lei à vista?
Atualmente, tramita na Câmara um projeto de lei que regulamenta o mercado de redução de emissões de gases de efeito estufa, com metas obrigatórias. A proposta está apensada a outras, que estão paradas desde maio.
Segundo Thaís, um dos motivos pelos quais o PL está suspenso é a expectativa quanto à COP27, que ocorrerá em novembro e promete trazer novidades e suporte ao assunto.
Para ela, o texto não resolve o problema, mas “já é um ponto de partida”, na medida em que traz os primeiros passos para a modulação da dinâmica e a adequação ao modelo.
Glaucia, por sua vez, frisa que o PL já está com muitas emendas e é difícil saber como ele ficará no final — especialmente porque o Congresso possui comissões “que não são exatamente sensíveis à questão ambiental”.
Disseminação da ideia
Rosario considera que o conceito de mercado de créditos de carbono ainda é um pouco difícil para a sociedade — o que explicaria, por exemplo, a dificuldade dos governos em enfrentá-lo. Segundo ele, é necessário “um debate mais profundo sobre o tema”.
Porém, ele lembra que há uma pressão cada vez maior para a sustentabilidade das empresas e a adoção do ESG (governança ambiental, social e corporativa). Isso vem “engajando a questão do clima de uma forma bem pujante”.
Para Thaís, é necessário que o tema faça parte do cotidiano das pessoas, para uma melhor compreensão e a criação de mecanismos que possibilitem a contribuição de qualquer cidadão na área.
“Logo nós seremos reclamados, enquanto pessoas físicas e consumidores finais, para nos adequarmos, tomarmos certas posturas ou investirmos em certos negócios que impactem de modo significativo a manutenção e a preservação do meio ambiente sadio e equilibrado”, conclui ela.
Fonte: José Higídio – Consultor Jurídico