O biocombustível tem papel fundamental para a descarbonização e tem ajudado empresas de diversos setores, como a mineração, em seus planos de reduzir a pegada de carbono
Betim, Minas Gerais, 5 de julho de 1979. A montadora italiana Fiat lança o primeiro carro a álcool produzido em série no mundo. Apelidado Cachacinha, porque os gases de escape têm o cheiro da bebida, o modelo 147 é a resposta brasileira à crise do petróleo de 1973. Começava ali uma revolução cujo propósito, como o futuro revelaria, vai multo além de driblar os preços da gasolina.
Passados 45 anos, o álcool, agora renomeado para etanol, entre outros avanços, perdeu o odor de pinga e, desde 2010, abastece também veículos maiores — e não apenas carros de passeio. Mas, sobretudo, o biocombustível se revela peça-chave na transição energética.
Produzido a partir de vegetais, como cana-de-açúcar, milho, beterraba e mandioca, o etanol polui bem menos do que os combustíveis fósseis. Agora, o biocombustível promete reduzir a pegada ecológica até dos caminhões muito pesados, consumidores de grandes quantidades de diesel.
A mineradora Vale acaba de anunciar uma parceria com a montadora japonesa Komatsu e com a fabricante americana de motores Cummins para desenvolver e testar os chamados caminhões fora de estrada, movidos a biocombustíveis — uma mistura composta por 70% de etanol.
Gigantescos, com capacidade de carregar até 290 toneladas de material, esses veículos são imprescindíveis paras as operações nas minas. Só no Brasil, a companhia tem 450 caminhões fora de estrada — 80 deles, da Komatsu.
“É o equivalente a 34 mil veículos de passeio”, diz Ludmila Nascimento, diretora de energia e descarbonização da Vale, em entrevista ao NeoFeed. Abastecida exclusivamente com diesel, a frota total da empresa responde por até 15% das emissões de gases de efeito estufa (GEE) da mineradora.
A companhia também está estudando a viabilidade da mistura de etanol e diesel em um acordo de colaboração com a montadora americana Caterpillar.
A expectativa é a de que, com o biocombustível, a redução nas emissões diretas de CO2 seja de até 70%. Se tudo correr dentro do previsto, os caminhões fora de estrada da Vale serão os primeiros desse porte no mundo a rodar com etanol no tanque, segundo a empresa.
Além das pesquisas com o biocombustível, a parceria com a Caterpillar inclui ainda o desenvolvimento de caminhões fora de estrada movidos a bateria. “Estamos desenvolvendo um portfólio de opções para descarbonizar as operações da Vale”, afirma Ludmila. “As soluções mais viáveis serão adotadas.”
Em 2020, a mineradora anunciou investimentos entre US$ 4 bilhões e US$ 6 bilhões para reduzir as emissões diretas e indiretas (de escopos 1 e 2) em 33% até 2030. O uso de biocombustíveis está entre as prioridade da empresa.
E2G, mais verde ainda
Frente às potencialidades do etanol, é natural que a demanda pelo produto aumente. Avaliado em US$ 87,71 bilhões, em 2022, o mercado global do biocombustível deve bater os US$ 135 bilhões, nos próximos seis anos, evoluindo a uma taxa de crescimento anual composta de 5,6%, informam os analistas da consultoria Fortune Business Insights.
Depois dos Estados Unidos, o Brasil é o maior produtor do mundo. Com uma produção em larga escala já bem estabelecida e uma rede de distribuição bem estruturada, a experiência brasileira coloca o país em posição de destaque rumo ao futuro sustentável. Já somos protagonistas, por exemplo, na fabricação do etanol de segunda geração, o E2G — também chamado de etanol verde, etanol celulósico ou bioetanol.
Versão ainda mais sustentável do que seu precursor, o produto é feito a partir de resíduos do processo de produção do etanol e do açúcar. Sua pegada de carbono é cerca de 30% menor do que o composto de primeira geração e até 80% menor do que os combustíveis fósseis.
Além de ser um combustível limpo, o E2G promete resolver um dos principais entraves para o aumento da produção de biocombustíveis no país. Grande parte do etanol brasileiro vem da cana-de-açúcar, cujas plantações abastecem também o mercado açucareiro.
Ao reaproveitar o “lixo” da cadeia do etanol tradicional e do açúcar, o E2G dispensa ainda a abertura de novas fronteiras agrícolas, enquanto aumenta a produtividade em 50%.
A única produtora de E2G em escala comercial no Brasil é a Raízen, empresa integrada de energia, que produz e comercializa, além de etanol, açúcar, combustíveis e bioenergia. Com mais de € 5 bilhões em contratos, a companhia exporta grande parte do etanol verde para a Europa.
“É um dos mercados que mais valoriza soluções feitas a partir de resíduos, juntamente com os Estados Unidos e Japão”, diz Paula Kovarsky, vice-presidente de sustentabilidade e estratégia da Raízen, em entrevista ao NeoFeed.
Atualmente, o E2G é usado misturado à gasolina, para abastecer veículos leves. Mas pode ter outras aplicações, como o SAF (Sustainable Aviation Fuel), combustível sustentável de aviação, e o biobunker, biocombustíveis marítimos.
Na safra mais recente, a Raízen bateu recordes de produção de etanol verde: 36 milhões de litros, nas duas usinas já em atividade, ambas no interior paulista. “Além dessas, temos outras sete fábricas em fases de construção e projeto”, afirma Paula. “Cada uma delas terá capacidade instalada de 82 milhões de litros de E2G por ano e receberá investimento de R$ 1,2 bilhão.”
Das universidades para os tanques
Os avanços que vemos hoje nos campos, nos tanques, nas estradas e nas minas se devem ao trabalho duro de cientistas brasileiros. Nos laboratórios de universidades, espalhadas pelo país, pesquisadores se dedicam a encontrar soluções para atender à crescente demanda por energia limpa, produzindo um volume cada vez maior e mais sustentável de etanol.
Uma equipe da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), por exemplo, desenvolveu uma cepa geneticamente modificada da levedura Saccharomyces cerevisiae capaz de digerir o principal açúcar da planta agave, transformando esse carboidrato em etanol.
Suculenta comum no México, o agave é a base para a fabricação de tequila. Por aqui, é frequente no semiárido nordestino e se destina, principalmente, à produção da fibra de sisal — processo no qual é descartada grande parte de sua biomassa. Os resíduos não são usados para a produção de biocombustível justamente pela dificuldade de conversão do açúcar inulina.
Os pesquisadores do Laboratório de Genômica e Bioenergia, do Instituto de Biologia, por meio da manipulação genética, conseguiram transformar a Saccharomyces cerevisiae em fábricas microscópicas de etanol, a partir da inulina.
Abre-se, assim, mais uma frente para a produção sustentável do produto. Uma frente enorme, diga-se de passagem. O sertão brasileiro ocupa um oitavo do território nacional — 105 milhões dos 850 milhões de hectares totais. E, como explica Gonçalo Pereira, orientador da pesquisa da Unicamp, em relatório da Agência Fapesp, 10 milhões de hectares já forneceriam mais do que o dobro de todo o etanol produzido hoje no país.
Um levantamento da Empresa de Pesquisa Energética, parceira do Ministério de Minas e Energia, projeta um crescimento na oferta do biocombustível dos 35,4 bilhões de litros, registrados no ano passado, para 51 bilhões, em 2033. Do total, 84% vêm da cana e o restante, do milho.
Por: Giuliana Bergamo Fonte: NeoFeed
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